Minha
história é igual a de muitas e muitas mulheres do Brasil. Engravidei do Pietro em
2009, aos 30 anos, tive uma gestação de baixo risco. Fui acompanhada por uma
obstetra através do plano de saúde e busquei essa profissional porque outros
profissionais da área elogiavam seu trabalho, afirmavam que ela respeitava a
escolha da mulher no parto e só indicava cesariana se houvesse um real problema
clínico. Tive um pré-natal com muitas intervenções - muitos exames laboratoriais, de imagem
(ultrasonografia, doppler), toques a partir de 37 semanas. Foi também a partir
de 37 semanas que começou o “monitoramento semanal”. Fiz uma ultrasonografia ,
e na metade das 38 semanas o perfil biofísico fetal. No dia desse exame estava
bem, tinha feito consulta com a obstetra pela manhã. De tarde fui fazer o
exame. A clínica estava lotada, fui atendida no início da noite. Fiz uma cardiotocografia e a ultra no final.
Foi nesse momento, em que é dada uma pontuação para alguns quesitos
relacionados ao bem estar do feto, que o médico me informou que meu útero “já
não era um hotel cinco estrelas, porque o líquido amniótico estava
diminuído”. Falou que a situação era de
risco, que com menos líquido o cordão umbilical poderia ser comprimido e causar
uma redução da oxigenação para meu filho, podendo levá-lo a óbito. Me informou
que já tinha telefonado para a minha obstetra e sugerido a interrupção da
gestação. Saí da clínica transtornada e telefonei imediatamente para ela. Ela
confirmou o telefonema dele e concordou com o que ele sugeriu, me dizendo que talvez
tivesse de interromper minha gestação com uma cesárea. Argumentei sobre a
possibilidade de uma indução, e ela disse que não, “não colocaria um pré-natal
tão bom a perder”. Também argumentei se não haveria um erro no exame e ela
negou que isso fosse possível. Perguntei porque aquilo havia acontecido, eu
estava bem, não perdia líquido, e ela disse que eu estava com uma
“insuficiência placentária”. Sugeriu que eu repetisse o exame em dois
dias. Fiquei transtornada, achando que
meu filho poderia ter algum problema, com medo que ele pudesse morrer. Fui para
casa péssima, junto ao meu marido, que teve que fazer um chá para que eu me
acalmasse. Consegui dormir, e já na manhã seguinte a obstetra me ligava, dizendo
que seu marido, pediatra, estava na clínica P. e encontrou a drª Y, e que ela
pensou melhor e achava que eu tinha que ir lá e repetir o exame logo. Fui,
dessa vez sozinha, pois meu marido tinha de trabalhar, e a tal drª Y me disse
que quase não via líquido. Fiz uma cardiotoco e a drª Y telefonou para a minha
obstetra. Por telefone mesmo ela indicou a interrupção da gestação. Ia fazer
uma cesárea de urgência e já deixaria marcado o centro cirúrgico para oito da
noite. Ah, e se eu precisasse de alguma coisa era só ligar para ela, que estava
trabalhando na secretaria de saúde. Fiquei sozinha e desamparada. Chorando
muito. Não voltei para casa, já era de tarde, falei por telefone com meu
marido, que passaria em casa, pegaria minhas coisas e iria para a clínica P. A
noite chegou, drª P. chegou, nem uma conversa decente teve comigo, que estava emocionalmente
péssima. Fui para o centro cirúrgico e minha cesárea não teve nada de
humanizada. A única coisa que ela me perguntou era se eu queria ver meu filho
sendo arrancado das minhas entranhas. Obviamente que eu não quis. Quando ele
foi extraído apenas ouvi seu choro, não sei o que aconteceu, depois colocaram
seu rosto junto ao meu e o levaram. Nada de mamar na primeira hora, apenas esse
breve contato. A anestesista perguntou se eu queria dormir, perguntei por
quanto tempo, ela disse que somente enquanto me suturavam, aceitei que ela me
apagasse. Acordei quando estava sendo levada para o quarto. Meu filho foi ficar
comigo umas três horas depois que nasceu porque pedi para meu marido insistir
junto ao berçário para levarem ele para o quarto, e o início da amamentação foi
terrível. Sem posição para amementar, anestesiada, não tive ajuda da equipe de
enfermagem e na manhã seguinte os mamilos estavam vermelhos. Recebi alta com os
mamilos muito machucados. Tive muitas dificuldades para amamentar, mas busquei
ajuda. Fiquei muito triste, além do luto do não-parto ainda passava por aquela
transição hormonal do puerpério, chorava muito, tive baby blues. A sensação que eu tinha era de um vazio que eu não
sabia explicar. Olhava para meu filho, tão lindo, tão pequenino, e sentia um
estranhamento. Aquele ser estava dentro de mim? Foi meu corpo que o gerou?A amamentação
ajudou a cicatrizar a ferida que a cesárea deixou no meu espírito e construir o vínculo com meu filho. Um grupo de
mães foi muito especial para mim no sucesso da amamentação, e também para me
ajudar a acordar do torpor no qual eu estava envolvida. Nessas reuniões conheci
ativistas do parto. Essas mulheres me questionavam sobre a indicação da minha
cesárea, que eu acreditava ter sido necessárea. Até que um dia, quando meu
filho tinha quase onze meses, uma dessas ativistas me falou algo que me fez
parar e pensar: ela questionou o excesso de exames a que fui submetida e disse
que atualmente diminuição de líquido amniótico tem sido motivo de indicação
para muitas cesáreas desnecessárias.
Exumando
a cesárea
Eu,
que estava entorpecida, até então não tinha pesquisado mais sobre a indicação
da minha cesárea. A dor de passar pela cirurgia foi muito grande, então
acreditar que o procedimento realmente tinha sido necessário me ajudava a ir
superando o sofrimento do não-parto. Após aquele questionamento comecei a
pesquisar na internet e descobri tantas coisas... Descobri a verdade. Foi muito
doloroso e essa revelação para mim mesma fez a ferida novamente sangrar. Me
sentia uma completa idiota por ter acreditado nessa profissional, me sentia a
pior das mulheres e a pior das mães. Vivi novamente o luto do meu não-parto.
Aos poucos fui elaborando isso tudo dentro de mim, confrontando essa dor. E
conforme as coisas se ajustavam, foi nascendo um ódio muito grande dessa
médica. Fui aos poucos me perdoando, mas não era possível perdoá-la. Por muito
tempo me sentia assim: sofrida por ter tido meu parto roubado, com um profundo
ódio da obstetra.
Entendendo
os motivos da minha cesárea
Durante
muitos meses eu me perguntava: por que isso aconteceu comigo? Encontrei muitas
respostas ao longo dos anos. A primeira coisa que percebi é que essa cesárea
era a repetição de um padrão na minha família. Eu era a terceira geração de
mulheres que passava por cesárea. Minha avó, nascida em casa no interior da
Bahia, veio para o Rio de Janeiro e teve minha mãe em 1954 através de uma
cesárea que aconteceu porque minha mãe entrou em sofrimento fetal durante o
trabalho de parto. Depois a minha avó teve um filho à fórceps e com uma episio
monstruosa, segundo conta minha mãe, e um terceiro filho, nascido de cesárea.
Minha mãe me teve através de uma cesárea. Cheguei a 42 semanas de gestação, e
meu tio, que era o obstetra, induziu por 24h. A indução falhou e ela passou
pela primeira cesárea. Meus irmão nasceram da mesma forma. E eu repeti a
história das mulheres da minha família. Para mim aquilo tinha algum
significado. Há alguns anos eu tinha ouvido falar de uma terapia chamada
Constelação Familiar, baseada em cuidar dessas situaçãoes que se repetem nas
famílias. Sabia que precisava cuidar dessa questão. Mas não era só isso. Ao
longo das últimas décadas a indústria da cesárea deslanchou no Brasil e eu
tinha sido vítima dela. A mulher que deseja parir nesse país precisa ser
esperta e perspicaz, conhecer as armadilhas e artimanhas utilizadas pelos
“doutores cesaristas”. E eu era completamente ingênua, pois nunca me aprofundei
em buscar informações a respeito dessas armadilhas, já que a obstetra era tão
bem referenciada e eu acreditava que o mais importante era ter uma equipe que
eu pudesse confiar. Eu não conhecia listas de e-mail, grupos virtuais. Ora, se
eu conhecia duas mulheres do meu trabalho que pariram com a drª P. e todo mundo
dizia que ela não indicava cesárea sem necessidade, por que eu iria me
preocupar? Consegui compreender depois dessa experiência que a minha
ingenuidade nada mais era do que uma expressão da submissão feminina perante o
patriarcado. Porque a gente cresce com um monte de práticas e costumes
machistas que vão se enraizando, conceitos que se introjetam e que nunca
questionamos. Nessa relação com o saber médico eu me comportei como a menina
inocente e incapaz de fazer escolhas para sua vida, para seu corpo, a menina
obediente que confia cegamente no pai e executa suas ordens sem questionar.
Apesar de tão crítica para coisas externas eu estava completamente alienada de
mim mesma, do meu poder de decisão sobre meu corpo e sobre a minha feminilidade. Por isso eu fui um joguete na mão dela. Ela
percebeu isso e manipulou toda a situação conforme foi conveniente para ela. E
tenho quase certeza de que ela também acreditou que eu ficaria para o resto da
minha vida entorpecida.
Parto roubado: porque minha cesárea foi desnecessária
Embora
algumas pessoas questionem o que eu digo quando conto minha história, eu afirmo
com todas as letras que sim, minha cesárea foi desnecessária. Foi desnecessárea
porque eu não tinha que ter feito perfil biofísico fetal. Esse exame, como
descobri posteriormente, é indicado para grávidas hipertensas, diabéticas,
enfim, doentes, o que eu nunca fui. Eu não tinha nem mesmo que ter feito a
ultra com 37 semanas. Minha cesárea foi desnecessária porque mesmo que eu
estivesse com tão pouco líquido a conduta a ser adotada seria indução. Isso
está muito claro em protocolos do Ministério da Saúde. Se a indução falhasse,
aí sim a cesárea teria sido necessária. Questiono o resultado dos exames.
Questiono, ainda, o nível da relação entre a obstetra e os médicos que
realizaram os exames, principalmente depois que assisti o filme “O Renascimento
do Parto” e descobri que existem médicos que combinam resultados alarmantes com
ultrasonografistas para embasarem falsas indicações de cesáreas. O
ultrasonografista que fez o perfil biofisico foi recomendado pela obstetra, e o
fato dele ter telefonado para ela ao fazer o exame foi muito estranho. Eu não
tenho provas para acusar ninguém, no entanto me questiono porque tanta
“preocupação” em telefonar para discutir meu caso. E o laudo da drª Y de que eu
quase não tinha mais líquido, isso em menos de vinte e quatro horas após o
primeiro exame e sem eu ter notado perdas, também é duvidoso. Há alguns meses,
depois de ler um livro – Parto Alquímico – consegui perceber um outro detalhe
na minha história: a pressão para eu repetir o exame na manhã seguinte ao
perfil biofísico foi uma forma de não me dar tempo para deixar a poeira baixar
e procurar outra opinião, para não me dar tempo de pensar. Porque se eu tivesse
me acalmado ao longo do dia eu teria procurado meu tio obstetra e ele poderia
ter me ajudado. A entidade nosológica “insuficiência placentária” sempre foi
mal explicada. Numa consulta depois da cirurgia, questionei a obstetra sobre
aquele diagnóstico, como teria surgido o problema, porque afinal de contas eu
não tive nenhuma alteração na gestação. A sua resposta foi que “gravidez é uma
caixinha de surpresas”. Por fim, realizando o pré-natal da minha filha, três
anos após a cesárea, resolvi um dia olhar os exames do pré-natal do meu filho
para comparar a quantidade de intervenções. Fiquei surpresa ao encontrar mais
dois pedidos de perfil biofísico fetal, pra serem feitos com 39/40 semanas e
40/41 semanas. Aquilo me deu certeza de que a cesárea já estava premeditada, eu
é que fui tola demais para perceber.
Concluindo
A cesárea deixa um vazio muito grande, inexplicável. É uma sensação de que faltou algo, de que um capítulo foi pulado. Fico tentando entender o porquê disso. Acho que quando o corpo não entra em trabalho de parto é como se o inconsciente entendesse que a cria morreu, não vingou. Sei lá, é estranho... Quando meu filho tinha pouco mais de 18 meses fui fazer terapia. Queria me libertar de tanto ódio por ter tido meu parto roubado. Fiz hipnose, fiz Constelação Familiar. Descobri nós familiares e identificações que geraram esse desfecho doloroso – a cesárea – nas mulheres da minha família. Trabalhei muito a minha raiva. Entendi que esse sentimento é legítimo e deve ser usado para mover, para caminhar, para transformar. Aceitei meu ódio, me aceitei como um ser que tem direito a ter esse sentimento, fui olhando sob outros prismas minha história. Minha meta era expressar toda a dor e raiva que senti para a obstetra, o que consegui pouco depois do meu filho completar três anos, através de um e-mail. Percorrer esse caminho foi doloroso, mas foi transformador, porque me permitiu autoconhecimento e um empoderamento que eu não tinha. Ficar entorpecida é mais fácil, mas não faz crescer. Hoje eu não sou mais a moça ingênua, hoje eu sou uma mulher consciente do meu corpo, dona das minhas escolhas e questiono toda e qualquer intervenção médica em mim ou nas minhas crias. Não guardo culpa por ter passado pela cesárea. Nos grupos pró-parto costumo ler opiniões de mulheres que dizem que quem passa por cesárea é porque não queria de verdade ter um parto, porque não buscou informação, porque não quis se empoderar. Não gosto desse discurso, que para mim equivale a culpar a vítima de um estupro porque estava com roupa inapropriada em local de risco. O terrorismo que eu passei, que muitas mulheres passam, é violência obstétrica. A atitude desses profissionais é covarde, porque eles se aproveitam do momento de vulnerabilidade da mulher na gestação e no parto para manipular e fazerem intervenções. Temos, sim, que nos informar. Mas nenhum profissional possui o direito de exercer poder sobre o outro usando seu conhecimento como arma de tortura. Ninguém tem o direito de violar o direito do outro, por mais desinformado e ignorante que esse outro seja.
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